Memória e utopia, transmutadas em linguagem teatral,
renovam a apreensão da relação entre dramaturgia e experiência
social. Em A moratória (1955) e Rastro atrás (1966),
a lembrança do descenso da família de Jorge Andrade impregna
a fala dos personagens e dos objetos que os cercam.
Neles se inscreve a história da família e da oligarquia
agrária a que pertenceu o dramaturgo. A peça de Gianfrancesco
Guarnieri, Eles não usam black-tie (1958), ativou os
sonhos de uma geração sobre o potencial da cultura na
reordenação da sociedade. O operariado estreou nos palcos
da metrópole pelo drama de uma família tensionada
pela greve, pelo conflito geracional e pela luta de classes.
Eis a prova do relevo da cena teatral numa conjuntura excepcional
de transformação da cultura brasileira, sinalizada
pelo cinema novo e pelo intrincado entrelaçamento do
teatro, com o rádio e com o início da televisão no país
A estreita relação do teatro com a memória é evidente no trabalho dos atores. Sem ela os intérpretes não
poderiam representar e se inventar como “outros”. Ela está presente também quando o texto dramático apoiase
na transmutação da memória dos autores, como é o caso dos dramaturgos que selecionamos para a análise:
Jorge Andrade (1922-1980) e Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006). Para dar pulso cênico à reminiscência de
Jorge Andrade, nas peças A moratória (1955) e Rastro atrás (1966); ou ao invento como projeção imaginada da
utopia partilhada pela geração de Guarnieri, em Eles não usam black-tie (1958), ambos os autores utilizaram uma
das técnicas do trabalho da memória: fixaram lugares e objetos para desvelá-la.
1
Nas peças de Jorge Andrade, a
lembrança objetivada do descenso social de sua família impregna tanto a fala dos personagens quanto os objetos
que os cercam. Antes de tudo, as casas que habitam: a do pretérito, da opulência e do mando; a do presente,
modesta e sem brilho. Mas ela também se condensa na máquina de costura, que serviu de recreio à menina rica
do passado e de esteio da família no descenso do presente; no relógio pendurado na sala de jantar; nos santos
nas paredes. Atando significados simbólicos e relações sociais, a casa e os objetos são mais que peças de cenário.
Neles se inscreve a história social da família, que é também a da classe a que pertenceu o dramaturgo: a oligarquia
agrária ligada ao café